Tenho uma estranha tendência para ler os livros fora do momento em que é suposto serem lidos – ou seja, quando são lançados. Tenho livros à espera há quatro, cinco, dez anos. Alguns nunca vão ter vez – e espero que isso não os entristeça demais. Se lhes servir de consolo, tenho um filho que lê mais do que alguma vez eu li na vida, por isso provavelmente ele os encontrará mesmo que eu deles me desencontre para sempre.
Livros são como pessoas, e os desencontros podem sair caros. Mas justamente por serem como pessoas, livros estão sujeitos ao desencontro, à teoria do caos, ao acaso, à sincronicidade, conforme nos dê jeito. Ou seja verdade. Acredito que os acasos são propositados, o que quer que isto possa querer dizer...
Tudo isto para dizer que li agora, só agora, “Intimidade”, de Hanif Kureish, que comprei ou me ofereceram em 1998. O livro não teve culpa – estava arrumadinho no seu lugar, entre as obras cujos autores têm nomes que começam por “H”, e peguei nele ao acaso. Li assim: “as palavras são acções e podem fazer com que aconteçam coisas. Depois de ditas não se podem mais recuperar”.
Gostei da ideia e, ainda de pé, li algumas páginas mais. Fui sublinhando bocados, porque o livro é em si uma soma de aforismos: “O amor é um trabalho obscuro: temos que sujar as mãos. Se nos retraímos, nada de interessante acontece”.
Confesso, porém, que desta vez me entristeceu chegar agora a esta “Intimidade” – parece que chega fora de tempo, sinto que me fez falta há mais anos, noutra altura.
Não é a primeira vez que me acontece – mas gostava de partilhar esta ideia trágica do tempo a passar. Porque vivemos a guardar-nos para um tempo qualquer: o tempo em que vamos ter tempo para a casa de férias, o tempo em que vamos por fim fazer a viagem sonhada, o tempo em que vamos “por a leitura em dia”, frase típica de inquérito de jornal no Verão. O tempo parece que vem sempre a seguir.
Só que o tempo passa. E quando passa, passam com ele os tempos em que devíamos ler, por exemplo, algo assim: “Fazemos asneiras, somos desencaminhados, perdemo-nos. Se pudéssemos ver os nossos percursos retorcidos como uma espécie de experiência, sem desejar uma segurança impossível – nada de interessante acontece sem ousadia – talvez pudesse ser alcançada qualquer espécie de apaziguamento. Claro que podemos fazer experiências com a nossa própria vida. Mas talvez não o devêssemos fazer com a vida dos outros”.
Queria ter lido isto há uns anos. Teria sido útil. Li agora, e serve-me “de menos”. Mas a maior estupidez da juventude e dos anos pré-trinta é mesmo essa: a ilusão do “tempo para tudo”. O tempo que se pode gastar, ou usar, ou passar, ou “tipo viver”, como dizem os nossos filhos. Eles não sabem, mas...
... Esqueçam lá isso. Não vai haver. Vivam já. Aproveitem já. Gozem agora. Não usem a crise como pretexto para adiar, nem a miséria como desculpa para não arriscar.
Se eu tivesse lido “Intimidade” em 1998 (e agora que releio a crónica acho que li bocados, mas não todo...) presumo que a minha vida teria sido outra. Pode ser que, por ler agora, tenha pela frente uma belíssima estrada de algodão macio. Mas talvez devesse ter seguido a lógica das coisas. Ler livros quando são lançados. Cometer loucuras quando me podia desculpar com a idade. Arriscar quando parecia não haver amanhã.
Teria sido tudo mais fácil. E a palavra vergonha ganharia uma outra dimensão. Mais ajustada e própria. Como se quer, quando se quer ter a idade que se tem. É verdade: quando nos sentimos fora de tempo, estamos fora de tudo.
Pedro Rolo Duarte