Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


domingo, 27 de junho de 2021

Solidão a quanto obrigas

Desde que nasci, nada para mim foi fácil.

Para nascer fui tirada a ferros. 

E a infância de mãe ausente, que curava feridas das ausências de dois irmãos mortos. Fiquei filha única. Com tudo o que tem de bom e de mau.

Encontrei umas mães substitutas, mas o cheiro da Mãe é só um.

Os Domingos sempre me foram particularmente difíceis, ou porque eram o dia de regressar ao colégio interno, a calçada de Carriche na altura era a chorar,  ou às cidades onde desde tenra idade vivi sozinha. Não tive almoços de família aos Domingos. Mas tive a liberdade de os esticar assim que pude.

Uma exposição, um concerto, um livro, um copo, cinema fora de horas, alimenta muitos esfomeados...os passeantes sem ninguém à espera.

A liberdade cobra um preço.



 O Júlio Pomar disse-me sempre em alturas difíceis da minha vida

– Aguenta-te
que de facto é a única coisa que se pode dizer. E eu tento aguentar, fingir que aguento quando sinto que me desmorono dentro de mim. Há sempre uma parede ou outra, ou um bocado de parede, que resiste e encosto-me a ela pensando
– Quando é que irá cair, quando é que irá cair?
Talvez caia, talvez não. E, se não cai, conseguiremos levantar de novo tudo o resto? Ou uma parte do resto? Ou um resto do resto? Amanhar uma espécie de tecto? Ou sentar-me no chão, ao lado das pedras, sem olhar para elas? Sentir que me desmoronei também, me tornei uma ruína igualmente? O Júlio
– Aguenta-te
quer dizer, a voz do Júlio num ponto qualquer em mim
– Aguenta-te
isto é não o Júlio, só a voz, entre poeira que assenta e tijolos quebrados
– Aguenta-te
dois olhos pequeninos atrás de óculos grossos
– Aguenta-te
comigo a tentar agrupar-me, juntar-me todo, defender–me, proteger o que sou, o que teima em existir de mim e que não sei se me pertence ou está para ali como um velho retrato desfocado, do qual se não distinguem bem as feições. Torno-me uma pequenina coisa informe algures no meu corpo, torno-me um pingo de nada em silêncio, porém um silêncio que grita embora nem eu mesmo o oiça. Apercebo- -me que grita apenas porque os meus ossos vibram, reduzidos a fios. Vida, vida, quanto tempo duras tu de facto? Prolongas–te por abril, maio, junho, julho, agosto, até ao setembro dos meus anos? As marés do equinócio a que eu assistia da muralha sobre a praia, as ondas que à noite, em criança, escutava da cama, no escuro, numa fúria teimosa, misturada com a inquietação dos pinheiros. Onde se escondem os melros à noite? Na garagem? No canavial? A repetirem
– Aguenta-te?
E, de repente, ignoro porquê, aparece-me Monsaraz na cabeça, as luzes de Espanha, há tantos anos que isto foi. Nossa Senhora da Lagoa, os homens a cantarem na capela abandonada, que grande é o passado, ou calor de assadura ou frio de sepultura. Um cão magríssimo rente às casas. Mulheres velhas sentadas. Saudades do Guadiana, a ribeira como lhe chamavam, barcos em forma de folhas.
– O que está o senhor a fazer?
– Estou escrevendo.
– Pois: olhar para dentro.
Isto a Margarida, gorda, rugosa. Olhar para dentro, a melhor definição que escutei. A açorda de cardos dela, a respiração da água no barro. Olhar para dentro. A vida inteira a olhar para dentro, eu a passear no castelo com a Isabel.
– Pai, o que é?
– Não é nada
– Pegue-me ao colo.
Porque vértices de pedras, porque lagartixas. Pegue-me ao colo é o meu sangue noutro corpo, separado pelas nossas peles mas o mesmo, alegra-me pensar que o mesmo. O que te acontecerá quando fores grande?
– Vou ser grande, pai?
– Muito grande.
– E quando for muito grande sou pequena também?
Claro que sim. Mesmo enorme hás-de caber nos meus braços. Besouros, vespas
– Tenho medo das vespas
com aquelas cinturinhas finas, aquela zanga. As raízes da figueira que levantavam a rua. Ver o sol pôr-se. Não ver nada. Ver o sol pôr-se outra vez.
– Se tu quisesses corríamos de mão dada até Reguengos.
– Porque é que Reguengos se chama Reguengos?
– Não faz mal, é só um nome.
– Como Isabel?
– Como Isabel.
– Como António?
– Como António.
– O meu avô também é António. Chama-se Avô António e o pai só se chama António.
– Pois é, olha só me chamo António.
– Menino Antoninho não se aproxime do lago que ainda cai lá dentro.
– Se cair lá dentro como um peixe inteiro.
– Que horror!
Nesse tempo, quando eu era capaz de comer peixes vermelhos, não havia António. Nem Isabel. Nem Reguengos. Havia tias, havia o senhor José a regar. Ao tirar o chapéu ficava-lhe um vinco na cabeça grisalha.
– Porque é que os cabelos ficam brancos?
– É da idade.
– O que é a idade?
– É quando a gente somos velhos.
– Eu não envelheço, pois não?
– Claro que não, menino.
E se não fosse março não envelhecia.
O senhor José morreu há muito tempo. Vestia uma espécie de fato-macaco, andava sempre com uma mangueira. Dois lagos no jardim, um grande e um pequeno. O grande com um caramanchão e de pedra. O pequeno de azulejos, mais perto da casa. Eu a descobrir coisas: vermes, gafanhotos. Uma bomba de gasolina na estrada, às vezes tropa a marchar. Os dois castelinhos das Portas de Benfica, árvores à esquerda, mendigos. A carroça do rapaz corcunda que vendia leite e descia com dificuldade lá de cima. Nunca lhe soube o nome mas invejava-o: queria ser grande muito depressa para vender leite também, mas depois de crescer já não me apetecia vender leite: somos tão inconstantes. Mas, como aconselha o Júlio
– Aguenta-te
e lá me aguento, que remédio. Encostado à minha única parede aguento-me. Não uma parede inteira, um pedaço. Sempre é melhor que nada. E talvez consiga ficar assim muito, muito tempo.

António Lobo Antunes, in 'Visão' (2016-07-28)

o Verão a subrir numa calle de Sorolla

 


Aos Domingos ainda dói mais

 "A saudade é para mim um sentimento estranho. Sempre ouvi dizer que diminui com o tempo, que nos vamos habituando, que nos vamos esquecendo mas, no meu caso, aumenta, surge quando menos espero, instala-se ao meu lado, e dói. É estranha a dor da saudade porque, para mim, é física. Sinto-a na cabeça, nos músculos, no corpo todo"

(António Lobo Antunes)

domingo, 20 de junho de 2021

sexta-feira, 18 de junho de 2021

quinta-feira, 10 de junho de 2021

sexta-feira, 4 de junho de 2021

 


 "La vida es un halo luminoso, una envoltura semitransparente que nos envuelve desde que tenemos una conciencia hasta el final".

Virginia Woolf


quarta-feira, 2 de junho de 2021

 "Una mujer es la historia de sus actos y pensamientos, de sus células y neuronas, de sus heridas y entusiasmos, de sus amores y desamores. Una mujer es inevitablemente la historia de su vientre, de las semillas que en él fecundaron, o no lo hicieron, o dejaron de hacerlo, y del momento aquél, el único en que se es diosa. Una mujer es la historia de lo pequeño, lo trivial, lo cotidiano, la suma de lo callado. Una mujer es siempre la historia de muchos hombres. Una mujer es la historia de su pueblo y de su raza. Y es la historia de sus raíces y de su origen, de cada mujer que fue alimentada por la anterior, para que ella naciera: una mujer es la historia de su sangre.

Pero también es la historia de una conciencia y de sus luchas interiores. También una mujer es la historia de su utopía". "Antigua vida mía", Marcela Serrano

a minha ideia de Felicidade


 

 


terça-feira, 1 de junho de 2021

"el origem del mundo empieza en un jardim."

 teria por isso preferido um convite a essa imersão.



 Um dia, gastos, voltaremos

A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há-de voltar aos nossos membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

Sophia