Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O Mercado de Usados

DIÁRIO DE UM PSIQUIATRA


Por José Gameiro


O MERCADO DE USADOS

“Ora me sinto na selva, sempre à espera dos predadores, ora me sinto no deserto, fechada em casa”

Não consegui parar de rir. A expressão é brilhante, ainda que possa parecer um pouco chocante: “Sabe, divorciei-me há três anos e, desde então, entrei no mercado de usados...”


A imagem é tão óbvia que não precisa de grandes explicações, mas ela “esmiuçou” detalhadamente como se sentia: “Quando era casada, claro que olhavam para mim, claro que tive abordagens mais ou menos claras, claro que fui percebendo — era muito jovem quando casei — que o casamento já não impede nada, estamos todos no mercado.”

Insistia na metáfora, que eu, se calhar por ser homem, relacionava com automóveis. Não lho disse, mas a intuição feminina não falhou: “Não pense que estou a falar de carros, estou a referir-me a pessoas. Mas quando pus o meu marido a andar, porque se meteu com a minha melhor amiga, estava longe de imaginar que a minha desvalorização fosse tão acentuada. Mas há uma coisa boa no meio disto: aprendi que a nossa cotação não varia só em função da idade.”

Pensei: esta senhora está apanhada pelas centenas de programas sobre economia que vê na televisão desde que começou a crise, não tarda nada está a falar de shortselling, desvalorizações bruscas, e ainda me vai dizer que a CMVM a retirou do mercado... Fantasias machistas de um psiquiatra que não consegue deixar a condição de homem quando uma mulher é um pouco mais arrojada na sua forma de ver as coisas. Guardei para mim os preconceitos e continuei a ouvi-la.

“Com o passar do tempo comecei a achar estranho as minhas amigas terem-se tornado mais esquivas, uns telefonemas de fugida, os jantares ao fim de semana foram-se e, no entanto, o seu apoio quando me separei foi expressivo. Um dia destes não resisti e perguntei à minha amiga mais antiga o porquê; respondeu-me quase a gaguejar: ‘Sabes como são os homens, mulher sozinha é vista como terreno de caça.’ Fiquei elucidada sobre a coutada em que passei a viver, mas o pior ainda estava para vir.”

À parte uma lição sobre a condição de uma mulher no mercado cinegético, ainda não tinha atingido a razão de ter vindo falar comigo. A clarividência era grande, o sofrimento parecia-me desprezível. Continuei sem fazer perguntas. Continuou. Vinha aí o pior, como ela dizia: “Um colega meu de trabalho, que conheço há mais de dez anos, convidou-me para almoçar. Achei estranho, mas fui. Ainda estávamos no pão com manteiga quando começou com uma conversa estragada sobre comer sempre a mesma coisa. Primeiro, fiz que não percebi, não ia chatear-me com um tipo que trabalha comigo. Mas ele quis explicar melhor: ‘Estou com a minha mulher há vinte anos, mas posso variar de prato de vez em quando, para não enjoar.’ Levantei-me da mesa e disse-lhe: ‘Olha, porque é que não vais à casa de banho e tens uma refeição sozinho?’ Sabe?, ora me sinto na selva, sempre à espera dos predadores, ora me sinto no deserto, fechada em casa.”

Continuava sem perceber porque tinha vindo, mas ela, mesmo no fim, explicou-me: “Gostava que me ajudasse a perceber os homens. Ou são muito sérios, querem logo casar, ter muitos filhos e as camisas arrumadas por cores, ou são uns bardinos, divertidos, mas parecem uns cometas, desaparecem num abrir e fechar de olhos.”

Não deve ter gostado da resposta: “Olhe, a queixar-se dos homens não vai a lado nenhum. Desculpe, mas não acredito nesse seu catálogo. Deve andar a ler muitas revistas femininas e alguns romances light… No Alentejo dizem que os homens são como os autocarros, perde-se um, há de vir outro.”

Jornal Expresso SEMANÁRIO, 4 de outubro de 2014

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