Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


terça-feira, 29 de outubro de 2019

Ser LIVRE para mim é ter lido isto na cara da diretora da Casa Fernando Pessoa (para o Filipe A. Rodrigues, como prometido)
Tabacaria Revisitada na Casa Fernando Pessoa
Álvaro, Ricardo, Bernardo, Alberto, Fernando,
sentaram-te ali no Chiado,
mãozinha ridícula pousada na mesa,
nem o prazer de um cigarro, nem o copo de vinho ou de absinto,
nem poesia, nem chocolates.
Só lojas, gente feia, turistas sem metafísica vão sentar-se a teu lado
e dar-te a mão
e tirar fotografias como se tu pudesses algum dia ser apenas bidimensional
E a acharem-se, quem sabe, boas e cultas pessoas.
Sentaram-te ali, muito direito como tu nunca foste
porque tinhas sempre os ombros curvados
como aqueles que não se enganam a si mesmos
sobre a inutilidade de todos os gestos,
a impossibilidade de todos os sonhos,
o absurdo de insistir em existir.
Logo tu que tinhas uma repugnância total por todos os que não percebiam a derrota original
Logo tu, que sabias ser irónico e mordaz.
Logo tu...
Gostava era de te ver levantar dali e distribuir lambada e pontapés a toda essa gente
numa violência que este tempo condena mas tu não
Gostava de te ver percorrer as livrarias, as editoras,
vir aqui a esta casa museu onde te enterraram para dar emprego a uns quantos maus escritores,
e queimar tudo isto,
queimar tudo,
como o teu querido Virgílio queria fazer com a Eneida
porque percebeu,
que nenhum homem,
nem mesmo os poetas como tu
podem tocar o absoluto senão quando tocam
a terra cavada para os receber
Nos quartos onde viveste miseravelmente
erguem-se agora senhoras e senhores que querem ser teus donos.
E escrevem livros e fazem colóquios a ensinar-te.
A ensinar-te.
E vendem-se a bom preço uns bonecos esfíngicos
do que se pretende teres sido tu.
Vendem-te, Fernando.
Vendem-te e vendem-te.
Uns como conhecimento, outros como objecto
“made in china”
Magnetes para frigorífico, canecas para beber leite sem lactose e sem mãe
A pouco e pouco as tuas palavras desaparecem sob as palavras que outros querem que digas.
Vais desaparecendo sob aquele que o Almada fez de ti
e onde tu já não habitas. Algum dia habitaste?
Como poderias habitar outra coisa que não o efémero?
Tu que fugiste de todas as imagens, de todas as utopias.
Continuam a querer-te casado com a tal da Ofélinha,
ou maricas,
mas sempre tributável, quotidiano e fútil.
Qualquer coisa que sirva a nós
para sentirmos que te possuímos.
Arranjaram-te tantos heterónimos quanto estudiosos.
Cada um quer achar o seu.
Porque achar um nome é achar uma prisão. Querem-te ali,
preso onde tu só andes por aquela eterna Lisboa dos anos 20 e 30, sempre igual à caricatura que fizeram de ti os livros escolares
Queria era ver-te aqui a desmentir-nos a todos,
com as tuas roupas elegantes e velhas,
a tua falta de dinheiro, o teu cansaço, o teu desespero, os projectos arruinados
Queria ver-te aqui quando eras um homem ignorado pelas mulheres
e não um mito.
É provável que nos fossemos logo todos embora.
Eras um bocado excêntrico, solitário, exalavas derrota
e as pessoas não gostam disso.
Eras um looser, Fernandinho, que a metafísica não conta como mérito
Ao velho que serias hoje ninguém daria lugar no eléctrico.
Terias uma reforma miserável de 600 euros
e é provável que não encontrasses editora que olhasse duas vezes para os teus poemas.
És demasiado simbólico, metafísico, confessional.
És muito pouco coloquial,
terias que dar uma no Ezra Pound e outra no T.S. Eliot.
Terias que ser cool, ter hype. E tu não tinhas esse jeito mundano de agradar
Eras frágil, tímido, tinhas vergonha de existir.
Esta gente não gostaria de ti.
Esta gente, os tais da tua pátria Língua Portuguesa gostam é das prosas sentimentais
da poesia com trocadilhos sobre o gin e a água tónica.
O mundo, como sabes, está cheio de génios
e os génios são sempre aqueles que estão perto do poder.
Se vivesses em Lisboa hoje não terias dinheiro sequer para pagar um quarto,
porque estão todos alugados a esses turistas que vêm sentar-se a dar a mão flácida à tua estátua e usam sacos de pano brancos como mortalhas com as tuas fuças de judeu estampadas
Não terias certamente o Esteves, a tabacaria
e quase não terias jornais.
E estamos hoje reunidos aqui, Fernando António Nogueira
Pessoa,
para te matar mais uma vez.
[aplausos, por favor]
[casa Fernando Pessoa, 2016]
Joana Emídio Marques

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