«…Os versos não são como há quem julgue, sentimentos (esses temo-los nós muito cedo) — são experiências. Para escrever um único verso é preciso terem-se visto muitas cidades, homens, e coisas, é preciso conhecer os animais, é preciso sentir como voam os pássaros e saber que movimento fazem as flores quando abrem, pela manhã. É preciso poder recordar caminhos em regiões desconhecidas, encontros inesperados, separações que, de longe, a pouco e pouco, víamos aproximar; certos dias da infância cujo mistério ainda hoje não está esclarecido; os pais, a quem acabávamos por magoar quando nos traziam uma alegria e nós não a compreendíamos (era uma alegria feita para outros); doenças de criança que começavam de modo tão estranho, por tão profundas e graves transformações; dias passados em quartos calmos e contidos; manhãs na beira do mar; o próprio mar; os mares; noites de viagem que estremeciam muito alto e voavam com todas as estrelas — e nem sequer basta saber pensar em tudo isso. É preciso ter lembranças de muitas noites de amor, de gritos de mulher rugindo em dores de parto — e das mulheres que, leves, exangues, adormecidas, começavam de novo a fechar-se. É ainda preciso ter estado ao lado dos moribundos, ter ficado sentado junto dos mortos, no quarto com a janela aberta e os barulhos que entravam. E nem sequer bastam as lembranças. É preciso esquecê-las quando já são numerosas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que voltem. Porque as próprias lembranças não são ainda o que conta. Só quando em nós elas se tornam sangue, olhar, gesto, quando já não têm nome e já não se distinguem do que somos, então, e só então, poderá acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas se levante a primeira palavra de um verso».
quinta-feira, 26 de junho de 2025
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