Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

E fecho a porta,
baixo as persianas,
corro as cortinas,
retiro as flores da jarra,
fecho o saco do lixo,
lavo a jarra e as mãos,
lavo as mãos e a cara,
lavo os dentes sem me olhar o espelho
evito como posso chorar.

Foram dias de abundância,
como se a frugalidade fosse um defeito.
Agora tenho a certeza,
é na abundância que melhor revela a pobreza.

Recolho-me ao quarto.
O Bolaño acende um cigarro,
acendo também um cigarro,
há vários dias que não fumo, comento,
que enquanto se fuma não se pode rezar
e que Vergílio, supostamente,
morreu com um cancro nos pulmões,
barata tonta falo sem parar, é o Bolaño!,
que termina sem pressa o cigarro
e enquanto limpa os óculos à camisa diz
Te visitan en la hora más oscura todos tus amores perdidos.,
respondo-lhe na sua língua que
La imaginación es la loca de la casa.,
respondo-lhe com Santa Teresa D'Ávila,
devia ter respondido que nunca li um livro seu
e que isso não interessa nada.

Eu sei que tenho telhados de vidro,
talvez por isso a cabeça sempre nas nuvens.

Mas hoje os amantes não são bem-vindos.
Hoje não quero um anjo com asas de pavão.
Hoje não quero um homem nem uma maçã.

Ontem foi noite de paz e paz nenhuma,
o Inverno apenas a começar,
não é fácil manter o equilíbrio,
entre a esperança e o desespero
acabamos a falar com estranhos,
não quero acabar o dia a falar de Deus,
a falar do homem,
tenho vergonha de figuras tristes,
os elefantes também se cansam,
não foram feitos para fugir de caçadores,
preciso de descansar.
Raquel Serejo Martins

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