Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


domingo, 8 de dezembro de 2019

Sempre que vou jantar a casa dos meus pais,saio de lá com a infância atravessada : Benfica mudou, a minha mãe deixou de ter 30 anos, posso fumar sem que ninguém me proiba, quando vem a travessa para a mesa nunca são fatias recheadas, não encontro os meus irmãos de pijama, com os cabelos loiros molhados do banho. A casa dos meus pais não se alterou muito: os quartos dos filhos transformaram -se em salas mas o cheiro é o mesmo . Há retratos de mortos : os meus avós, alguns tios ,algumas tias, mortos que nunca me habituei ao facto de estarem mortos,que não me espantaria se entrassem de repente, pessoas que me fazem falta uma falta dos diabos e a quem não faço falta nenhuma porque nada agora lhes faz falta quanto mais eu. Sempre que vou a casa dos meus pais saio de lá com a infância atravessada : não conheço as pessoas nem os prédios, o Paraíso levou sumiço, a Havaneza evaporou-se....................................
A infância atravessada é pior que uma espinha : a gente engole as bolas de pão e não passa. Talvez seja por isso que vou a Benfica uma vez por mês se tanto e que quando lá vou me sinto como um cão à procura de um osso que julgo ter enterrado e afinal de contas não existia osso nenhum. Um osso que mesmo assim procuro até me arderem os olhos. Como me procuro nos álbuns de retratos. Como me procuro debaixo da minha cama
(Está lá a minha cama )
Como me procuro no quintal, na figueira do quintal, no sítio onde havia poço, em que havia a capoeira, de modo que depois do jantar fico no automóvel a ver o muro ,.o portão com um ananás de cada lado, as janelas trancadas, a copa escura da acácia porque é noite . Se calhar é sempre noite quando a gente cresce. Fico no automóvel à espera que a minha mãe me chame e sabendo que não me chama porque julga que me fuí embora.
Realmente fui-me embora. Para sempre.
António Lobo Antunes

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