Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


sexta-feira, 19 de julho de 2024

 (Depois de um longo silêncio, durante o qual atravessa lentamente o palco, observa a plateia repleta, esgotada, e o que vê é o vazio).

ELA:
Isto não é um romance. Que fique bem claro. Não vou contar-te histórias com intrigas e mortes, traições e ambições. Não há enredo. Não há um fio condutor. Falo-te de ausência. Desse espaço pleno do vazio. Como um universo de compêndio antigo e barato. A plenitude do nada. O dia, hoje, chama-se semana. Há quem prefira a plenitude de um sábado, a perfeição de uma quinta-feira. Eu, não. Este dia vago tem a locução hebdómada do tempo infalível. Marcado pela ausência. Da ausência à inexistência é um pequeno passo, um ínfimo fragmento do tempo deste dia tão complexo que marca um calendário lacunar. Ninguém passa por aqui. Já passaram. Desapareceram na glória iludida dos seus dias continuados em vão por ignorância. Foram breves durante um presente que se desvaneceu nas neblinas da distância. Ausentes. Inexistentes. Ficções da memória. Desperdícios. Resíduos que a ausência transfigura em pó e o pó em viajante insignificante pelos cardeais.
Segues-me?
A ausência neste dia-semana poderá ser um lapso ou morte como parte de uma de muitas eternidades. Poderá ser. Neste caso, é uma suspensão como cenário de um palco onde nada. Uma reticência sem dúvida, sem perplexidade. É um deserto como espectáculo, um conforto instalado na metafórica nuvem. Ninguém. Nenhum corpo. Apenas vazio flagelado por destroços que a memória ainda não apagou e que torna esta ausência não uma totalidade, mas um fragmento da plenitude inana. Se durante a observação da ausência a meditação corrompe há um delírio gnóstico que perverte a condição de ser vácuo na vacuidade. A ideia de deus, ou de deuses, é um flagelo que funciona como um antitranquilizante que se intromete no espaço do vazio, querendo ser arrogantemente a sua origem. Nunca o foi. A idolatração, seja do que for, é um veneno mortal que te afasta da grandiosidade do vazio e da ausência. É uma granada mortífera. Átomo contra ti.
Segues-me?
A experiência da ausência e do vazio levar-me-á à plenitude da acção com a consciência de todos os sentidos. Donde a leitura da transparência. De um novo real erguido. Arquitecto de um destino. Argonauta do novel em viagem surpreendente. Do vazio ao imprevisível todo um universo em expansão criadora até à resolução do mistério da tua existência única e irrepetível. Sem flagelos gnósticos. Nem pragas ameaçadoras das galáxias comerciais travestidas em residências do pútrido poder divino cujo símbolo é a moeda sem face nem coroa. Isto não é um romance de amor.
(MUTAÇÃO)
Luís Filipe Sarmento, «Not», teatro, 2024

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