Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


sábado, 5 de janeiro de 2013

O que significa uma só imagem, quando a fazemos cedo demais? Devia-se esperar e acumular sentido e doçura durante toda a vida e se possível durante uma longa vida, e então só no fim, talvez se pudesse fazer uma boa imagem. Porque estas não são, como as gentes pensam, sentimentos (esses têm-se cedo bastante), – são experiências. Por amor delas têm que se ver muitas cidades, homens e coisas, têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e saber o gesto com que as flores se abrem se abrem pela manhã. É preciso poder tornar a pensar em caminhos, em regiões desconhecidas, em encontros inesperados e despedidas que se viram vir de longe, – em dias de infância ainda não esclarecidos, nos pais que tivemos de magoar quando nos traziam uma alegria e nós a não compreendemos (era uma alegria para outro –), em doenças de infância que começam de maneira estranha com tantas transformações profundas e graves, em dias passados em quartos calmos e recolhidos e em manhãs à beira-mar, no próprio mar, em mares, em noites de viagem que passaram sussurrando alto e voaram com todos os astros, – e ainda não é bastante poder pensar em tudo isto. É preciso ter a recordação de muitas noites de amor, das quais nenhuma foi igual a outra, de gritos de mulheres no parto e de parturientes leves, brancas e adormecidas que se fecham. Mas é também preciso ter estado ao pé de moribundos ter ficado sentado ao pé de mortos no quarto com a janela aberta e os ruídos que vinham por acessos, E também não é bastante ter recordações. É preciso saber esquecê-las quando são muitas, e é preciso ter a grande paciência de esperar que elas regressem. Pois que as recordações mesmas ainda não são o que é preciso. Só quando elas se fazem sangue em nós, olhar e gesto, quando já não têm nome e já se não distinguem de nós mesmos, só então é que pode acontecer que, numa hora muito rara, do meio delas surja uma primeira imagem, Rita.
 
Escrito por Jorge Gil, em Jan 2013

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