Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


domingo, 28 de fevereiro de 2021

Entretendo a Alma

Domingo, de confinamento.

Hoje sem chuva e sem afinador de tesouras.

Que precisava, já parti uma faca e foi afinal com o abre latas que consegui abrir a lata da tinta.

Pintei uma porta, para a poder deixar a descoberto.

A tentar disfarçar os raspões como na vida.

Li jornais velhos, aqui nada vai fora sem ter sido totalmente aproveitado.

Comi uns verdes Kit Kat de Matcha. Inventam tudo para nos entreter.

Mas temos é sede e fome de sentir coisas de verdade. Nada substitui um abraço.

Vejo um aranhiço a descer da teia no armário da cozinha. Quer dizer saudades ou dinheiro. 

Faltam-me os dois. Poupo-lhe a vida. Depois do meu encontro com a tarântula tudo é nada.

Vejo o vizinho no seu andar coxo e roupão castanho aos quadrados a passear na rua o seu novo entretém, cão substituto. Ladra muitíssimo, mais que a Ísis, que doente sobreviveu a tudo menos a um 2020.

E este dono, já deveria saber que os lugares não se ocupam.

Mandou vir os sobrinhos para o conhecerem. Como quem mostra o novo filho.

A vizinhança toda querendo ou não já deu conta,... no silêncio reinante dos confinados é o que se ouve. O ladrar de quem quer ocupar um lugar.

Isso e um alarme irritante de carro ou loja arrombada. Ninguém quer saber.

Cada um mais preocupado em se aguentar erguido.

Recebo uma chamada de uma velha amiga, estranho, o telefone já não toca.

Aqueço, ao som de uma voz familiar. Vou com os restos das folhas dos jornais para a almofada junto à janela ver se apanho o raio de sol que passa entre o vidro.

Nova chamada com vídeo da minha mãe, agora aprendeu e queira eu ou não é atender esteja como esteja, diz que já não se lembra da minha cara. Acredito, e que fazer.

Que tens no pescoço pergunta, são rugas senhora digo eu.

Lá percebi que queria saber era do colar, como se algum novo...

Não mãe, é uma abelha mestra das réplicas de Lalique. 

Coisas de verdade já não. Nada me sabe.

Esgotadas as séries, os livros em espera sem cabeça livre que os leia,

vou entretendo as mãos já que a Alma não.

A minha avó dizia que estas mãos de bicho da seda de pouco me serviriam. 

Para coser meias ainda servem. Emparelhar as desconfinadas.

Preciso é de um pouco de mar,

barro para amassar,

algum terraço ao sol,

e com sorte um ombro para amar.

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