Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

Estive numa livraria a participar na apresentação de um livro do poeta romeno, e meu amigo há mais de trinta anos, Dinu Flamand. O livro é muito bom, está muito bem traduzido e no entanto, de uma língua para outra, o que inevitavelmente se perde! Recordo-me de ler poesia portuguesa em francês, o Só de António Nobre, e de sentir
– É isto mas não é isto
porque faltava qualquer coisa, difícil de explicar o quê, que lhe diminuía irremediavelmente a força e o encanto, como quando, ao vermos o retrato de uma pessoa que conhecemos ou olhamos para ela num espelho, ainda que a mover-se e a falar, é ela e não é ela e não sei quê de essencial inevitavelmente se perde. Daí que qualquer tradução de uma obra seja impossível, qualquer retrato imperfeito. Somos nós e não somos nós, é simplesmente uma aproximação de nós e nem um génio como Velázquez, nos retratos que fez, consegue dar-nos a pessoa que, se colocada à nossa frente, tem uma riqueza muito maior. Ele pintou por exemplo, o admirável quadro que representa o Papa Inocêncio XII, o Papa comentou
– Demasiado verdadeiro
e esta frase é bastante mais profunda do que parece. Talvez que demasiada verdade seja insuportável, talvez as máscaras que, mesmo sem querer, usamos sempre, sejam mais importantes que o resto. Ainda que os traços do Papa sejam perfeitamente fiéis não o são realmente. Há outra pessoa para além daquela pessoa, há outra pessoa naquela pessoa
(é tão difícil explicar isto, não existem palavras que traduzam o que sinto)
e isso nem Velázquez o pode dar, porque somos e não somos o que os outros vêem, somos e não somos o que de nós julgamos ser. Ninguém é o que é, e recordo-me o que Nerval escreveu nas costas de uma fotografia sua: Je suis l’autre, sou o outro, frase que, ao lê-la pela primeira vez, achei estranha e agora considero perfeitamente justa. Um poema, por exemplo, é mais do que um poema, uma mulher ou um homem é mais do que uma mulher ou um homem. Falta sempre algo vital que é inapreensível e esse inapreensível, e só esse inapreensível, é verdadeiro. E isto para as fotografias, para os livros, para que seja o que for da nossa vida. Ninguém é o que parece. Ou antes: ninguém é o que é, todos somos não apenas diferentes mas mais do que somos, ou outra coisa além do que somos e daí não podermos conhecer-nos. A verdadeira essência é irreproduzível, como Saint-Exupéry disse invisível para os olhos e, acrescento eu, para os sentidos. A vida, ao fim e ao cabo, não passa de um jogo de espelhos e de máscaras. Não alcançamos o fundo, ficamos pela nata das coisas talvez porque aquilo a que chamamos realidade seja por natureza fugidia e fluida. Hipócrates, o grande homem da Medicina, conseguiu exprimir mais ou menos tudo isto quando escreveu que “a arte é longa, a vida breve, a experiência enganadora, o juízo difícil e a oportunidade fugidia”, uma frase que não cessa de atormentar-me e perseguir-me. E isto é válido para o acto médico consoante é válido para qualquer pessoa, qualquer situação, qualquer livro. Por exemplo um livro lido segunda vez é outro. Por exemplo ao conhecermos melhor alguém o alguém vai mudando, até fisicamente, dentro de nós. Cortázar: tudo é excepcional, e o excepcional escapa-nos. Daí a vida, todas as vidas, serem um jogo de espelhos, eternamente mutável, que jamais conseguimos fixar. É espantoso isto: faço um livro. E, feito o livro, ele continua, mesmo já impresso, a mudar. E é ele que muda ou somos nós que mudamos em relação a ele? O meu pai morreu há anos e no entanto continua a alterar-se dentro de mim. Tudo continua a mudar permanentemente dentro de nós e, pergunto eu, é tudo que muda ou somos nós que mudamos, ou são o tudo e nós a mudarem? A consequência, como se afirma, é a realidade não existir e acabarmos por voltar, inevitavelmente, a pergunta de Pôncio Pilatos:
– O que é a verdade?
que me surge como a questão essencial que permanece sem resposta, que permanecerá para sempre sem resposta. Ou então pode pôr-se a hipótese de, por exemplo
– Quantas verdades existem?
e talvez existam inúmeras verdades a cada momento da nossa vida e caminhemos na tal floresta de enganos de que D. Francisco Manuel de Melo, no século XVIII, falava. Tudo isto, e tanto mais que não cabe num textinho destes, a propósito de um livro de poemas. O escritor francês Gautier tinha toda a razão: levaram-no a ver as Meninas de Velázquez, uma das maiores criações do Homem, e ele, ao cabo de um longo silêncio, perguntou
– Mas onde é que está o quadro?
e esta pergunta vale por tudo o que neste papel disse.

ANTÓNIO LOBO ANTUNES
INTRODUÇÃO A TODOS NÓS

Sem comentários:

Enviar um comentário