Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


sábado, 11 de julho de 2020

"Envelheço com a nómada solidão das aves."
Al Berto

É frequente acontecer-me, com uma nitidez tal que confunde e mistura o passado num presente. 
De repente não estou aqui mas em Barrancos. Num momento de registo casual, tinha chegado de ir buscar água fresca à Fonte da Pipa, que era a melhor água do mundo, enchia o piporro do avô Mendes, que lavava as garrafas de vidro para as voltar a encher, umas de água outras de vinho. Comi pão com queijo fresco e sal. Fui à rua, ouvi-me a gritar Ehhh...Tia Ângela!!, era a vizinha dos meus avós da casa da frente. A manhã que tinha sido fria adivinhava a tarde ardente. Era aquela hora antes do almoço onde ainda se podia andar na vizinhança. O barulho das andorinhas na rua. E tanta claridade. Teria 12 ou 13 anos. De vestido rodado, infantilizado e saltitante. Pálida e magrinha como só era eu. A risca feita ao meio da cabeça, os ganchos grandes de cada lado firmavam a teimosia dos arrepios num cabelo mal cortado, castanho, fino e escorregadio. Usava óculos de massa maiores que a cara fina. E uns enormes olhos claros e absorventes, que guardaram tudo. De tal forma que ainda hoje sinto o longo corredor escuro, fresco e o cheiro do encerado, vejo a luz ao fundo, oiço as gargalhadas da Tia Ângela, que se sentava com os braços roliços cruzados sobre o farto peito a contar histórias que eu gostava de ouvir. Vejo os sinais grandes que tinha na cara. Os óculos pequenos, finos de haste preta só em cima. Os contrastes. E aí percebi o conforto duma Alma alegre num corpo satisfeito. Deve ser por isso que não parei de engordar.
Ah sim... já sei o que fui lá fazer, aguardava o Sr. Constantino que estava para chegar do talho. Traria as costeletinhas de borrego, partidas fininhas como só ele, que eu levaria para a Avó Pura cozinhar. Não tornei a provar. O Amor de avó não se replica.

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