Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


domingo, 17 de maio de 2020

Os sabores perdidos

Praia das Maçãs, 17 de um Maio em Covid

Finalmente o mar.
Sempre tive alguma sorte em ocupar as coisas únicas.
Encontrei assim vazia, à minha espera, a única mesa de madeira e banco corrido junto ao alpendre sobre o mar.
Cheira a maresia, aqui o mar é de verdade por isso escolho este.
Apetece percebes, mexilhões e espuma de branco fresco.
Não se ouvem as ondas de forma nítida. O mar também silenciou.
- Já não se ouve o mar? O que é que se passa? Pergunta um Sr. passeante em chegada ruidosa como todos. Larga no entretanto bafos de cigarro admirado, e eu que aguente.
Passa que nos sobra ruído. Os motoqueiros de passeio domingueiro são uma peste sem remédio.
Mas enquanto o inferno forem os outros ainda será um mal menor.
Foram meses de espera. A sentir o mar em goles secos. Enlatado.
Falta-nos a brisa, o sabor, o cheiro e o tacto.
 A maioria não morrerá de Covid, mas do confinamento. 
 A precaução também mata.
Hoje foi poder olhar. Tomar Sol.
Anseio mergulhar. Sem metros loteados. Sem prazeres limitados. Quando largamos os prazeres, adoecemos.
Ligar as sensações ao coração.
O que nos une, sempre será mais forte que o medo que nos separa.
A pele branca e balofa precisa arejar.
O mar sem barcos, mas muitos pássaros sem nome.
Alguns selfistas, de mastro em punho a escolher o melhor ângulo.
Um pescador de cana em linha.
O motor de um jipe descapotável, cheio de meninos de kit como convém, calções padronizados, polo desbotado, sapato de vela, aliança no dedo e fio da cruz ao pescoço. Falam alto que a auto -estima nestas bandas nunca faltou, escolhem o sitio da pesca submarina.
Eu de olhar longe, a absorver, as emoções, o que nos liga ao primordial, o centro primitivo do nosso Ser, que existe em nós muito antes do dever racional do fazer e do ter. 

Regresso a Lisboa com as cores do mar nos olhos.
Consigo um peixe de verdade para o almoço na tasca da esquina. Tudo é um luxo em tempo de clausura.
Voltarão os sabores perdidos. Guardarei todos. São os melhores condimentos dos meus vazios.

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