Nas alturas mais complicadas da minha vida escrevo os melhores capítulos.

Não há passos perdidos.


terça-feira, 12 de maio de 2020

Sabor a mim

Habito neste corpo faz 47 anos, quase meia centena.
Sei que serei mais os dias da primeira metade, com o sabor da Saudade.
A infância de dias bonitos em horizontes longínquos de céu aberto.
Mudar as vacas nos campos de esteva e rosmaninho, na cabeça uma gorra, na mão a vara, nos pés as  botas caneleiras, preparada para tudo.
Ir buscar água na fonte fresca da Pipa.
Os cabelos despenteados de quem vive.
O Ar na cara.
Os passeios de bicicleta em verão sempre azul.
O calor que era brasa nas tardes de filmes de cowboys americanos, corridas de touros, o mundial, ou os jogos sem fronteira.
Os primeiros copos de muitos tintos de verano com pata negra.
Os tachos cheios, com tudo o que era selvagem e bom, cogumelos, espargos, perdizes e alcachofras como nunca mais.
As braseiras no inverno, a jogar ao Loto com feijões.
O olhar encantado nos botões coloridos. Entender o que está dentro de um berlinde.
O cheiro do pão de verdade nos talêgos de pano. Os bolos de páscoa, com sabor a erva doce, o café de saco.
O Amor único dos meus avós.
O reboliço nas ruas de sobe e desce de Barrancos.
O jantar de todos, peixe frito com gaspacho.
As casas abertas onde se grita EH!! e se entra sem bater.
Os mercados de Sábado a encher alcofas e encontros calorosos e risonhos, aqui permito e sou a Ritinha.
A frieza escura das paredes longas do colégio, que me fizeram entender cedo na pele a diferença entre Luz e Sombra.
Depois consegui e dei grito de ar fresco e tenro da liberdade.
A juventude como se não houvesse amanhã.
Os amores quando ainda eram eternos.
As calçadas de Évora, que se as pedras falassem.
As músicas em cada concerto, os passos de dança em colunas de discotecas cheias ou vazias mas eu nelas e elas ainda em mim.
A amizade sem barreiras, o toque na pele, os abraços sentidos, os beijos molhados, o encanto no Belo.
A leveza dos momentos na praia a ler até que apeteça, boiar no mar, o sono na água.

As horas entretida num passado e presente sem medo, esse papão gigante que comeu todos, chegou sem alvoroço e se instalou sem pedir licença.
Não mais o Coliseu, as enchentes no balcão do Gambrinus, as ruas cheias de Lisboa, as travessas de beleza decrépita em Tertúlias de Poesia, as inaugurações acotoveladas nos museus. A rua mais cor de rosa desbotou de vez.

- Não mãe, já morreu, não volta a nascer! - diz a Carminho na sua sabedoria madura com a minha insistência a olhar o vaso cheio de Hera seca. A Hera, a resiliente trepa caminhos,  mas também com direito a fragilidades e à morte. Processo natural. O que falha aqui é apenas a minha teima da aceitação.
Tudo muda. Será a nossa única certeza.
Não se regressa, mas ficou em mim.

Felizes os convidados, mas para que Ceia Senhor?

Sem comentários:

Enviar um comentário